sou eu neste retrato
afirmou o velho
recobrando os sentidos
é ele também
repetiu baixinho
notando os
batimentos cardíacos
surpreso por acordar e
encontrar uma
pintura sobre
as mãos
rígidas
como tocos
de rio
e que
aos poucos
voltavam a
viver depois
do coma
os tubos finos
e quentes entravam
nos orifícios
do nariz
os dedos
começavam
a pressionar
o algodão cru
lentamente
a cortina da janela
mostrava os
pedaços
da rua e
de si mesmo
respirava
é você perguntou
sua neta
apontando para a
pintura foi
ela que
colocou a
lembrança ali
o retrato pescado
em suas coisas
aquela
juventude
úmida da
pele
como um
lagarto entrando
e saindo de
uma poça
o frescor da
personalidade
estendida
no piso
de pinho
o ar
carregado de
partículas
cobria a
ferida profunda
na lateral da
cabeça que o velho
cutucou com
fúria mesmo
de punho fechado
até tirar a
casca depois
cuspiu um troço na parede
olhando para a neta
disse
rita
oi vô
estou respondendo
uma mensagem de celular
desliga isso
áspero
e pega o espelho
aquele lilás
trincado que
deixei na
minha bolsa
quando
voltei de
santarém
diabo
o que aconteceu
você caiu de novo e
bateu a cabeça
disse a menina
ressabiada
chacoalhando o
espelhinho
merda
respondeu
depois
de alguns minutos
inclinando o crânio
em direção ao
teto
disposto a rasgar
as sombras
com os dentes
o velho checou
a figura
vaporosa
no espelho e
observou
a sorte
nos sais de prata
e o vento
no algodão
e perguntou
se era a
mesma pessoa
um gafanhoto
perdido
no norte
alguém
que
se debatia
no passado
onde achou isso
perguntou seco
movendo-se para
a direita e
depois para
a esquerda
levantando
o corpo
das amarras
da sonolência
incomodado
com a fragilidade
dentro de um livro do Guimarães rosa
respondeu a menina
apontando para
a biblioteca
bagunçada os
livros revirados
no tapete
o de capa dura
disse o velho alarmado
exato
ah meu deus do céu
suspirou
a pintura estava aí
o tempo inteiro
protegida desde
que cheguei
veja as manchas

como elas estão
vivas
o jovem
biólogo
com
o chapéu
de palha
a barba
farta
toda
desgrenhada
assim
o peito
aberto
os restos
da camisa
engolindo
o colar
trançado
sumindo
aqui
nessa
pincelada lenta
do pescoço
aos ombros
um
gesto só
nítido
quem fez a pintura
perguntou curiosa
olhando de
perto a
memória acesa
eu tinha
acabado de recolher
as minhas coisas
disse o velho
fui para o bar e sentei
numa mesa
dali podia ver
toda a margem do rio
e fiquei
coçando o
rosto um
tempão
o lugar tinha
borrachudo
pra caralho
e quando
me dei conta
naquele calor
depois
de ter colocado
um lenço na testa
vi
um homem
sozinho
terminando
essa pintura
fazia tudo
no colo
apoiando
a tela
num bastidor
eu
estava tão
cansado
não percebi
distraído
na espuma
que o cara
tinha os olhos
fixos
no meu rosto
havia algo
familiar nele
delicado e
rude
que me
incomodou
algo como
quintal
quando se
aproximou
carregando nas
costas a sua vida
um punhado de
telas enroladas
ofereci uma
cerveja e
com as mãos
cheias de tinta
pegou o copo
e me estendeu a
obra sem dizer
uma única
palavra
olho no olho
foi muito
rápido ele
bebeu tudo num
gole gostoso
pude ouvir a
garganta
estalando
ofereci
mais um copo
querendo
puxar conversa
então ele se virou
pegou a
maleta
onde socou os pincéis
e foi na direção
do tapajós
de sandálias
saltou
sobre a canoa
tive uma contração
na espinha nessa hora
um sentimento como
se percebesse por
trás da névoa um
rochedo próximo
não pude acreditar
observei o retrato
de novo
aos poucos fui
identificando
o seu rosto
os detalhes
colocados
de forma
carinhosa
eu não o via
há muito tempo
aquela juventude
diante da tempestade
aquele ímpeto
da despedida
o portão aberto
os barcos além da mancha
com os olhos marejados
observando
a semelhança
me perguntei
profundamente
como aquele
encontro
pôde acontecer
assim
como as cores
ainda brilhantes
revelavam
o caminho
perfeito entre
nós
os cinzas de
fundo flutuando
até a maldita
catarata
em um
dos olhos
a nata
o brilho
baixo
esticando
as raízes
da cegueira
na ignorância de
nos transformarmos tanto
o artista
deixou este
espelho lilás
o exato objeto
que ficava
no banheiro
dos meus pais
e me vi no retângulo
na superfície
gêmea
cheio de
perdigotos
tão real
e sujo
como a janela
da casa que
morei com
o portão de ferro
aberto pelo
cão amarelo
correndo desesperado
atrás
de um menino
em
fuga
mas vovô por que
não perguntou o nome dele
rita
deixa eu
te dizer uma coisa
ele era
o meu
irmão.
o gêmeo lilás
Ulysses Boscolo


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