OS ENCONTROS DE ERNESTO BONATO > 

Felipe Martinez

A pintura de Ernesto Bonato não é só feita por ele, envolve pelo menos mais dois atores. Para começar, o próprio artista, que inaugura a tela com golpes de pincel carregados com suas tintas solúveis em água, deixando um rastro vertical que escorre de cima para baixo. Da parte dele, nenhuma tentativa de controlar o processo e impedir que a água se espalhe pela superfície cinza azulada, preparada previamente. Essas primeiras pinceladas evocam a técnica alla prima, um toque direto na tela que deixa o caminho do gesto do artista, assertivo, sem hesitação. Mas assertivo não significa apressado e o movimento confiante revela que o processo de pintura antecede o momento em que o pintor se senta diante do cavalete. Linhas aplicadas com a tranquilidade de quem se move pela tela em um agir quase meditativo no qual as cores formam um mosaico que constrói a imagem, um tecido de textura e cor.
Diante do artista está o modelo, mas não um modelo fixo, em uma pose congelada que lembre uma estátua; ao contrário, os modelos das pinturas de Bonato têm a liberdade de conversar e de se mexer, devem mesmo estar à vontade para agir de modo espontâneo. E é justamente aí que está o retrato: não na pose, mas no indivíduo dinâmico, síntese de momentos variados. Dito de outro modo, não é a imagem fixa que interessa, mas o encontro entre artista e modelo. Não se trata somente de transformar o retratado em uma pintura para ser apreciada em suas qualidades de luz, sombra, intensidade de cor e outros aspectos formais, mas sobretudo de condensar a potência daquele momento, daquele encontro. O resultado é mais uma aparição do que uma representação.
Em 1889, o pintor Vincent van Gogh escreveu, em carta a sua irmã, que queria que suas pinturas pudessem ser vistas como uma aparição um século depois de tê-las pintado. Creio que van Gogh tinha razão em apontar esse caráter de aparição que um retrato deve ter. O bom retrato é aquele que não se contenta com a mera reprodução da imagem, mesmo que para isso a semelhança física com o modelo seja sacrificada. Bonato não está amarrado à semelhança física, ela é antes uma consequência natural do processo de condensar a experiência do encontro do artista com o retratado em tinta e movimentos de pincel. E por isso, suas pinturas têm a força de uma aparição, de um sujeito autônomo do pintor e do modelo, como alguém que olha diretamente ao espectador, trazendo à mente os retratos de Faium.
Desse modo, a tela condensa os instantes infinitesimais, as variações de luz, de humor, a personalidade desarmada, os movimentos espontâneos e o que há de mais circunstancial no encontro entre pintor e retratado. Nada é rígido, nem limitado; a pintura mora justamente na vibração das cores e na dinâmica das pinceladas que parecem sempre dispostas a continuar seu movimento, a dar o próximo passo. Assim, a pintura começa não como uma estrutura cromática pensada previamente, mas com a busca da cor local de cada pequeno pedaço visualizado pelo pintor. O que vemos diante da tela é um registro dessa espécie de desaceleração do tempo que a pintura demanda para surgir. E é a pintura que impõe essa desaceleração, porque participa desse encontro como sujeito ativo, tem suas próprias exigências para existir.
Temos, finalmente, nossos três atores: o pintor, o modelo e, o mais importante, a pintura. Creio que as pinceladas rápidas (mas nem por isso ansiosas) de Bonato busquem dar autonomia à pintura desde o começo, a incluí-la como sujeito do processo de sua própria fabricação. Mais que isso, a pintura é única capaz de levar esse encontro adiante, porque consegue cristalizar sua potência, como se transportasse consigo as outras duas partes dessa reunião. Em outras palavras, a pintura de Bonato condensa em sua materialidade não somente a presença do modelo, mas também a energia criativa do artista, para em seguida convidar o espectador a ser a quarta parte desse encontro.

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